Reservem 5 min. prá ler isso. Vale a leitura! Principalmente para nos que estamos acelerando pelo mundo virtual.
É um texto do Edgard Mello Filho, ex-piloto, sobre um dia de trabalho na época que ele era o administrador de Interlagos.
Conheço o Edgard ele tem total credibilidade em seus relatos .
No relato o "CHEFE", é um grande ídolo nosso.....Advinhem .....
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Estava na minha sala no autódromo quando o celular tocou. Era o chefe.
"Tudo bem aí?"
"Tudo, chefe, o que manda?"
"Seguinte, preciso ver algumas coisas aí. Preciso dar uma olhada porque o
belga (Roland Bruynseraede, o Charlie Whiting da época) vai chiar, vai ter que mexer no Berger e no Mergulho"
"Você vem com o Esquilo e vamos dar uma volta com a Onça"
Onça
era um Opalão quatro cilindros, preto, quatro portas. Um coitado. Ele
estava caindo de podre e graças ao querido amigo Paulo Taliba consegui
pegar o carro para o autódromo num rolo inacreditável entre
departamentos.
E acredite se quiser: o chefe se divertia muito
guiando a Onça. Uma vez, duas ou três semanas antes do GP do Brasil de
1994, ele me ligou e
disse:
"Vou aí dar uma repassada nas obras, faz o shakedown do Onça".
O
shakedown era colocar 42 libras nos pneus dianteiros e 39 nos traseiros
(aliás, as únicas coisas novas do carro, presente dos bons amigos da
Pirelli, quatro radiais 185 nos trinques), além de checar o arame da
porta dianteira direita para ver se estava firme sem ataques de
ferrugem.
Ele ria muito e nos divertíamos, principalmente quando
eu, para dar um tempero, imitava o locutor da TV e narrava as voltas
contra um
imaginário piloto de pequena estatura e nariz enorme,
docemente apelidado de "Narizinho". E um grande urso inglês chamado
"Roaaarrr", com suas luvas uma de cada cor, vermelha na mão direita e
azul na mão esquerda. Um canhão, rapidíssimo. Daqueles tipos que você
acabava até gostando. A gozação em cima de "Roaarr" é que demorava um
pouco para cair a ficha dele.
Deixei a Onça pronta, mas aquele dia seria especial. Ele chegou por volta
das
17h20, com uma Perua Audi S2. X-tudo. Turbo, cinco cilindros, jogada no
chão, aquelas rodas absurdas. Aquele barulho metálico ardido de motor
bravo (as BMWs também têm esse barulho característico de isca, pega).
Sentei no lado direito, passei o cinto e já cutuquei: "Isso aqui anda ou é para ir à missa?"
"Por quê?"
"Nada, só estou perguntando"
Entramos
pelo portão de cima mesmo e viramos à direita, rumo ao "S" com o nome
dele. No começo da descida, paramos. Ele ficou olhando para a
brita.
Não
perdi a viagem: "Está lembrando do esparramo que o teu parceiro made in
USA (Andrettinho) fez na largada do GP desse ano, aqui?"
"Isso acontece", desconversou.
Na
saída da segunda perna, ele contou: "Aqui foi a primeira vez que a luz
de pressão de óleo acendeu no final do GP do Brasil. Eu vi de relance e
fiquei imaginando se não tinha sido impressão. Me preparei para olhar na
outra volta e a tensão aumentou porque eu estava controlando o Damon e o
alemão que vinham atrás. Eu estava muito ligado neles porque o Damon
usava aquele carro de outro planeta e o alemão tinha aqueles cavalinhos a
mais que o meu motor, por estar usando uma série à frente". Perguntei
seco:
"Não tem jeito de mexer neste contrato da Benetton com a
Ford?". A resposta foi meio desanimadora: "O Ron está tentando, mas não
vai ser fácil, o Flavio (Briatore) está marcando em cima".
Foi a
deixa para matar a curiosidade: "Além da distribuição pneumática, tem
mais alguma coisa na usina, não tem?", perguntei. A confirmação veio,
como sempre, discreta: "É, tem algumas coisinhas". Emendei para não
perder o
momento: "Quantos cavalinhos o motor do alemão tem a mais tem a mais que o teu?"
Ele, como sempre modesto, respondeu: "Um pouco".
Cheguei
junto, agora é a hora: "Um pouco quanto? Uns 90 hp?". Estava difícil
tirar informação do homem. "Não, menos", falou. Resolvi forçar
mais um pouco, já perto do limite: "70? Fala aí!"
Elemanteve a guarda alta: "Não sei".
Agora vou cutucar para tirar o cidadão do sério e arriscar o meu pescoço:
"Senhoras e senhores, estamos entrevistando um piloto de F1 que não sabe quantos cavalos tem o seu motor, é espantoso!"
Foi o tempo de encolher o pescoço e levantar os ombros.
O
que veio a seguir foi em três idiomas: português, inglês e, sou capaz
de jurar que alguma coisa em Japonês: "Piiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiii
(censurado)
ficou p piiiiiiiiii da vida.
Senti
que poderia ser o momento e mandei uma paralela: "Não apela, vou chutar
40 a 45 burritos a mais". Silêncio, deu até para ouvir um pouquinho do
CD do Phill Collins. Armou um bico e completou com um muxoxo:
"Hummm, por aí".
Precisei dar uma descontraída no ambiente: "Respeitável público, além de
perder o lugar para o anão na Williams, ainda guia corrida a corrida com 40
cavalitos a menos no motor!"
A
seguir, momentos de uma leve baixaria e muita risada. Quando estávamos
no final da Descida do Lago, já apontado para a subida do Laranjinha, o
chefe
veio com mais uma: "Essa saída do Lago me preocupa, se der uma escapada
em pêndulo, com chicotada ao contrário, vai bater feio, precisava dar
um jeito de mexer aqui". Rebati: "Já pedi para os engenheiros da Emurb
darem uma olhada no que é que dá para fazer. Aqui tem um complicômetro,
chefia: a confluência dos lagos. A única saída de emergência é colocar o
guard-rail mais próximo da pista para não deixar ganhar velocidade na
hora que esparramar. O problema, chefe, é a hora que der uma pregada bem
caprichada do lado esquerdo. A lâmina vai devolver e o "elemento" vai
cruzar a pista de volta para o lado direito. Precisa ver se não pega
ninguém, nenhum anu errante no contrapé da biaba". Ele me deu uma
olhada, armou uma risada
de canto de boca, e conferiu: "Elemento, anu errante, contrapé da biaba?"
Devolvi bem curta: "Chefia, você entendeu, não estica".
Quando chegamos ao cotovelo - ou Bico de Pato -, ele comentou: "Aqui
acendeu
de novo a luz da pressão e desta vez eu vi e envelheci. Só me faltava
esta, estava no final da prova. Na África do Sul devia ter chovido
15
voltas antes, e aqui, essa?! Ainda bem que o motor, que já tinha dado
umas amarradas nas voltas atrás do safety-car, aguentou, já estava uma
barra e agora a FISA ainda me penalizando não sei até agora por que.
Fiquei
um tempão atrás do Erik (Comas, que foi o rei do ventilador no GP, pois
arrumou time penalty para todo mundo) e, quando ele tirou o pé e me
mandou passar, os caras me deram o pênalti".
(N.R. Túnel do tempo, forward: Montoya, tá vendo como é coisa antiga?
Aposto que são os mesmo daquela época. Aliás, para mim esta turminha já vem daquele escândalo do Japão - Túnel do tempo rewind).
Subimos
a Junção e, no final do Café, ele diminuiu. Levou a X-tudo para o lado
direito, deu uma provocada para o lado esquerdo e chamou o freio de mão.
Currupeio perfeito. Viramos 180º e já estávamos voltando para o Café,
iniciando a descida para Junção. Pensei: acho que é agora, vou atiçar.
"Respeitável público, no espetáculo de hoje teremos Don Becon e sua peruazinha", brinquei.
Peruazinha foi a palavra mágica. Cutuquei a fera com vara curtíssima.
"Você vai ver o que isso anda".
Infernizei:
""É bom mesmo, porque os caras da BMW estiveram aqui na semana passada e
eu executei uma M3. Achei que anda muito, por isso estou achando isso
aqui meio lerdo". Aí o homem pegou no breu: "Então vamos ver quanto vira
nesta pista ao contrário, você tem idéia?", perguntou. Pensei
comigo..."Consegui incendiar a fera"...
Completei jogando mais um
pouco de gasolina: "Não sei, mas vou abrir o relógio e navegar:
Atenção, Siviero para Biasion, Junção à direita, freada forte e quarta,
pé embaixo".
A partir deste momento foi só pintura. Adrenalina
pura, movimentos precisos, derrapagens controladas, controle absoluto,
um conjunto de ordens e contra-ordens que a S4 obedecia docilmente, como
que sabendo quem
manda, quem é o dono. O carro não ia para onde
queria, e sim para onde "ele" queria e colocava. O cheiro de borracha
queimada já era forte dentro do habitáculo.
Começando a subir o
Mergulho, mandei: "Pironnen para Kankkunen, direita de alta, quarta, pé
embaixo". Quando ia avisar do Bico de Pato, o cotovelo tinha chegado. O
problema é que saímos meio atravessados para o lado contrário da curva
que era para a esquerda (nós estávamos andando ao
contrário). Nos
últimos metros antes de passar do ponto e com um improviso espírita, ele
"inventou" um pêndulo que, sinceramente, não sei onde ele foi buscar.
Absurdo, já todo torto, ele deu uma provocadinha e a barata entrou na
dele, ameaçou voltar, eu só ouvi ele dizer: "Te peguei!". A partir daí
foi mais ou menos assim. Na pequena balançada da direita para a
esquerda,
ele percebeu antes e pendurou nos alicates (ABS). O barulho
lá embaixo na frente era característico: "Cram...Cram...Cram =
Tradução: Não vai travar".
Quando a frente ameaçou entrar, ou
melhor, quando a traseira ameaçou soltar, eu só ouvi um
"rrrrrrrrrrrrrrrriiiiiippp". Freio de mão puxado, ni qui, travou o eixo
lá atrás, foi-se a traseira. Quando ela foi, assinou a sentença de
execução do carro. O torpedo como um todo começou a contornar, girando
sobre um eixo imaginário bem no meio do carro, fazendo uma meia
lua, até chegar perto da metade da entrada do Bico de Pato.
Não
sei se vocês estão percebendo a magia da manobra. Até aí, ele só vinha
trabalhando com forças atuantes, sistema de freio em sequências de
derrapagens controladas. Naquela sucessão de manobras, ele já vinha com a
mão direita selecionando uma marcha adequada para a saída. A curva que
era para ter passado, não passou. Nós estávamos dentro dela, quase
apontados para a saída, com a marcha ideal selecionada e a plataforma
motriz em stand-by esperando a vez dela. Chegou. Lembro que bati os
olhos no
velocímetro estávamos entre 95 e 105 km/h. Aquele era o
ponto. O pé direito dele foi junto com o meu berro: "Dá-lhe gás!".
Naquele momento eu relembrei a ira dos deuses enfurecidos e a brutal
potência da usina turbocomprimida da casa de Ingolstadt. Absurdo,
absurdo, eu não conseguia definir se era castigo do céu ou coice de
mula: com as costas coladas no banco, via a S2
seguir uma trajetória muito bem definida a caminho do Pinheirinho.
Sem deixar cair a peteca, emendei: "Kivimavi para Allen, terceira marcha cravado sem tirar o pé".
Mas
sempre tem um mas. Quando ele apontou puxando para a direita, o foguete
empurrou um pouquinho à frente, ameaçando alargar a trajetória. Junto
com a tentativa de reação, ele imediatamente telegrafou o acelerador,
fazendo
a traseira escorregar e ficar mais ou menos a uns 15º
apontada para o lado de dentro da curva. Era tudo o que ele queria para
chamar potência no
acelerador. Fizemos o Pinheirinho e o "S" (antigo) em dois pêndulos.
Quando
chegamos perto da zebra saindo do "S" e a caminho do Laranjinha (só
relembrando que estamos andando ao contrário na pista), comentei:
"Nossa o que é no chão esse torpedo! O que fala essa usina e uma estupidez!".
Ele completou "Você vai ver nas de alta". Ao ouvir aquilo fiz uma reflexão:
"Senhor, vou testemunhar a verdade, vou conhecer de perto o toque divino de um dos eleitos".
O
motor urrando, o turbo descarregando, a velocidade crescendo, o
Laranjinha, a Subida do Lago velocíssima com freada forte para a
segunda perna na entrada da reta a caminho do Berger.
Todo
o Berger à direita (nós estamos andando ao contrário). O pêndulo veloz
direita esquerda para subir o "S" dele. E mais, a encardida chegada da
Junção morro abaixo, quinta a pleno. Não teria como descrever para
vocês, não encontraria palavras. São sensações que você sente quando por
exemplo entra num Louvre e descobre nomes como Leonardo da Vinci,
Raffaello
Sanzio, Michelangelo Merisi, Rembrandt Harmensz. Ou quando
ouve Antonio Vivaldi,Franz Schubert, Wolfgang Amadeus Mozart, Ludwig
von Beethoven, Johann Sebastian Bach ou mesmo uma "Rhapsody in Blue", de
Gershwin.
Quando você percebe que está com alguém que faz parte
desta lista dos "eleitos", como os citados acima, você se sente
especial. Você vive um
pequeno momento especial, que você vai levar para o resto da sua vida sem esquecer um detalhe.
Poesia
ou não, sempre tive a impressão que Deus manda uns caras aqui na Terra
para mostrar como ele faz as coisas. Mas, Edgard, não dá para
contar?
Desculpe,
não dá. Eu não tenho como descrever reações, comportamentos, atitudes,
antecipações, acima de 200 km/h. Você simplesmente fica
olhando
sem querer perder nada. É isso.
Não
dá para contar, é uma coisa sua, como foi de Gagarin, Carpenter,
Armstrong e Buz Aldrin. Como você quer ver tudo e não perder nada,
alguma
coisa você registra. O resto, você absorve. Acho que demos
umas oito voltas, depois da terceira virou rotina, conversamos, demos
risada, eu
xinguei a FISA (para variar)...O cheiro de borracha
queimada não parou, nem diminuiu, nós é que acostumamos com ele. Lá pela
sexta volta
perguntei sobre Donington a resposta você já sabe. A
"peruazinha" S2, um demônio, serve até para ir à feira, mas não leva
desaforo para casa. Aquele motor não tem cavalos, tem bufalos
enlouquecidos que, quando provocados, fazem
desabar uma tormenta.
Perto
do portão de saída, falei: "Me deixa aqui, vou andando até a minha
sala. Falou, até mais, chefia". Preocupado, me pediu: "Qualquer coisa,
me liga. Se chegar algum pedido da FISA, me passa por fax".
Para não perder o costume, provoquei na saída: "Fica frio. Da próxima vez, vem com um A8, tá bom?".
Ele deu uma gargalhada e se perdeu no transito da Teotônio Vilela.
Fico
imaginando que, para quem pudesse andar com Jim Clark, Ronnie Peterson,
Gilles Villeneuve, Jackie Stewart, Nelson Piquet e Michael
Schumacher,
a sensação deveria ser a mesma. Só sei que, lá pelas tantas em casa,
já na madrugada, olhei para o relógio e vi que o cronômetro ainda estava
funcionando. Eu tinha esquecido de parar aquela volta que fiquei de
marcar.
Naquele momento, 1h30 da manhã, descobri que oito horas atrás eu tinha
vivido uma aventura que ficaria na minha lembrança para o resto dos meus
dias. Simplesmente ela se juntava a outras como o meu primeiro DKW de
corrida, a minha primeira vitória com o Opala, A vitória nos 1000 Km de
Brasília, a vitória nas 12 de Goiânia, a vitória no Troféu José Carlos
Pace
em Brasília, meu primeiro Campeonato Brasileiro de D3, o
segundo, meu primeiro vôo num PA18, (todo mundo chamava de teco-teco).
Lembranças,
memorys, coisas que você não esquece mais.
Não sei
se isso ajudou, mas por essa e outras experiências eu não tive nenhuma
dúvida em ir para a frente das câmeras da TV Manchete naquele
maio
maldito e ficar berrando, durante oito ou nove horas, que podiam
esconder todas as fitas que quisessem, mas ele não tinha errado. Alguma
coisa tinha quebrado ou acontecido. Está bem, não discuto, tinha chegado
a hora dele,
ninguém foge dos desígnios de Deus. Mas ele foi de pé,
como um grande campeão. Reduziu três marchas e freou. Quer mais
consciência do que
isso de uma situação de emergência?
Os números podem falar o que for, pouco me importa. Eu sou feito de emoção.
Nasci,
vivi e vou morrer assim. A vida sem adrenalina simplesmente não tem
graça. Jamais vou separar a emoção do coração. Por isso, onde você
estiver
- Acelera, Ayrton. Acelera, campeão.
Alexandre Muniz.